Telegram Bloqueado no Brasil: o que exatamente aconteceu

Porque estamos com o aplicativo de mensagens Telegram bloqueado no Brasil? O tema foi noticiado amplamente por sites da área, como o Techtudo e a Revista Exame. Li várias matérias sobre o tema e fiquei incomodado com a falta de informações técnicas básicas. A maioria deles deixa a entender que o bloqueio é culpa do próprio Telegram, por não colaborar com a justiça. O Techtudo, por exemplo, publicou:

Não há previsão de retorno de funcionamento do Telegram. Isso ocorre porque é preciso, primeiro, que o aplicativo colabore com os órgãos federais para, então, ter ordem emitida desfazendo a sua suspensão.

O que exatamente aconteceu? A Polícia Federal obteve acesso a grupos neonazistas no Telegram que estariam recrutando menores para atos terroristas e, como parte das investigações, a justiça solicitou ao Telegram os números de telefones e outros dados de participantes de dois desses grupos. O Telegram demorou a responder e, quando respondeu, não entregou os dados e recorreu da decisão.

A sequência de eventos que levou ao Telegram bloqueado

Segundo o G1, o primeiro pedido da justiça para obter dados desses grupo aconteceu no dia 19/04, mas só foi encaminhada ao Telegram no dia 20/04, às 13h46. Um desses grupos já havia sido excluído há meses. O Telegram responde solicitando informações adicionais. A justiça envia parte dessas informações às 16h14 e o restante no dia seguinte, 21, às 8h06, momento em que o segundo grupo já havia sido também deletado. É parte da política de privacidade do Telegram a exclusão física real de dados que você mandou excluir. Embora a política de privacidade não fale sobre a exclusão de grupos, para as outras coisas todas, incluindo sua própria conta, o Telegram é claro: excluiu, já era, não temos cópia. Podemos deduzir que o mesmo se aplica também a grupos.

Acontece que esse segundo grupo, excluído no dia 20, havia sido alvo de um outro pedido da justiça ao Telegram, no dia 10. Esse pedido anterior havia sido menos abrangente, solicitava apenas dados do administrador do grupo. Segundo o Telegram, eles só tinham nesse momento informações desse administrador, coletadas para atender ao pedido do dia 10, e de mais ninguém. E não seria mais possível recuperar informações sobre os outros participantes do grupo. O Telegram diz que entregou o que tinha, mas a justiça considerou que não era suficiente e ordenou: Telegram bloqueado.

Veja a resposta publicada por Pavel Durov em seu canal no Telegram:

A missão do Telegram é preservar a privacidade e liberdade de expressão ao redor do mundo.

Em casos onde as leis locais vão contra essa missão ou impõem requerimentos tecnologicamente inviáveis, nós às vezes temos que deixar esses mercados. No passado, países como China, Irã e Rússia baniram Telegram devido a nossa postura baseada em princípios no tema de direitos humanos. Esses eventos, apesar de infelizes, são ainda preferíveis a trair nossos usuários e as crenças sobre as quais nos fundamentamos.

No Brasil, um tribunal requisitou dados que nos são tecnologicamente impossíveis de obter. Estamos apelando da decisão e esperando ansiosos pela solução final. Não importa o custo, vamos defender nossos usuários no Brasil e seu direito à comunicação privada.

Pavel Durov

Isso nos levanta três questões muito importantes:

Juízes lidando com tecnologia

A primeira delas é sobre o conhecimento técnico que deveria embasar decisões judiciais. O judiciário e a polícia precisam de bons assessores técnicos para auxilia-los nas decisões. Por exemplo, do primeiro grupo a ser excluído, mesmo que agisse imediatamente, o Telegram não teria dado algum.

Pior do que isso, veja esse trecho do ofício enviado pela Justiça do Espírito Santo ao Telegram:

… forneça, no prazo de 24 horas, os dados cadastrais com nome, nome de usuários, CPF, foto do perfil, status do perfil, e-mail, endereço, dados bancários e do cartão de crédito cadastrados, contatos fornecidos para recuperação de conta, dispositivos vinculados (incluindo IMEI, se houver), número de confiança
indicado para a autenticação de dois fatores e logs de criação (contendo IP, data, hora, fuso horário GMT/UTC e porta lógica) de todos os usuários do canal …

Você que é usuário de Telegram, me diga, em algum momento você cadastrou seu CPF ou sua conta bancária no aplicativo? Talvez você seja usuário do Premium e tenha cadastrado seu cartão de crédito. Mas, se for o caso, espero que seu cartão de crédito tenha sido tokenizado por um gateway de pagamento e o Telegram também não tenha acesso aos dados do cartão.

Como cumprir uma ordem impossível?

Não sei se Pavel Durov está de má vontade com a justiça brasileira. Ele é um sujeito polêmico e está sempre metido nesse tipo de confusão. Mas uma coisa está clara: mesmo que o Telegram não tivesse solicitado informações adicionais e tivesse agido imediatamente, não teria sido possível atender completamente o pedido da justiça. Veja esse trecho da política de privacidade do Telegram:

Telegram é um serviço de comunicação. Você informa seu número de telefone e dados básicos de conta (o que pode incluir um nome de perfil, foto de perfil e informação sobre você) para criar uma conta Telegram… Nós não queremos saber seu nome real, gênero, idade ou do que você gosta.

É claro que um juiz não tem a menor obrigação ou condições de saber o que é criptografia de ponta-a-ponta, política de retenção de dados, tokenização, etc. Mas deveria ter alguém ao lado dele para dizer: “então, excelência, isso aqui que o senhor está pedindo…”

Talvez, se o judiciário e a polícia estivessem melhor assessorados por técnicos competentes, não tivessem pedido ao Telegram dados que eles obviamente não têm. Talvez isso tivesse eliminado a necessidade de o Telegram responder com novas dúvidas. Nesse cenário em que o tempo foi crucial para o fracasso da iniciativa, talvez isso permitisse coletar os dados que o Telegram obviamente tinha (como número de telefone e IP) antes de o grupo ser apagado.

Sites e aplicativos na internet mundial

A segunda questão muito importante é sobre quanto empresas estrangeiras devem cumprir a legislação brasileira ao operar pela internet.

Por que então estamos com o Telegram bloqueado no Brasil? Se o Telegram não tinha os dados, por que o juiz determinou a suspensão do serviço? Porque no entendimento do juiz:

  1. O Telegram tinha os dados e não queria entregá-los. Por isso ele escreve “ante a recalcitrância do Telegram em cumprir…” O que volta para o ponto acima, o juiz não entendeu os detalhes técnicos do que estava pedindo.
  2. O Telegram deveria ter esses dados. Porque a legislação brasileira exige. O Marco Civil da Internet, em seu artigo 15°, diz:

O provedor de aplicações de internet constituído na forma de pessoa jurídica e que exerça essa atividade de forma organizada, profissionalmente e com fins econômicos deverá manter os respectivos registros de acesso a aplicações de internet, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de 6 (seis) meses, nos termos do regulamento.

Aqui também temos uma complicação ´técnica porque a legislação não diz quais registros de acesso, de quê, devem ser guardados. Absolutamente nenhuma aplicação guarda logs de TUDO o que o usuário faz ou acessa porque, obviamente, esses logs poderiam ser maiores que o próprio banco de dados da aplicação.

Ou seja, o Telegram poderia ter log de acesso dos usuários, com IP, hora de login e atividade, e não ter nenhuma informação sobre de que grupos cada usuário participava, tornando impossível vincular um id de grupo a uma lista de usuários. Tudo isso, sem descumprir a legislação. Acontece que o Telegram nem precisaria cumprir a legislação brasileira.

O Telegram e a lei brasileira

O Telegram não tem escritório no Brasil. Há um tempo alguns portais noticiaram, de uma forma bem sensacionalista, que o Telegram teria um escritório o representando no Brasil. Não é verdade, eles apenas contrataram um escritório de advocacia brasileiro para cuidar do registro da marca deles no Brasil.

Bom, é uma empresa com sede em Dubai e servidores todos fora do Brasil. Eles não estão sujeitos a nossa legislação. Nós deveríamos permitir que usuários brasileiros usassem os serviços deles?

Pense bem antes de responder. É claro que nós queremos que as empresas sejam responsáveis por seus atos, produtos e serviços e a legislação é uma maneira de tentar garantir isso. Mas você realmente quer que brasileiros não possam acessar sites, blogs, jogos, aplicativos e serviços de empresas e entidades que não têm uma sede brasileira? Isso não mataria boa parte da inovação que a internet pode trazer ao nos permitir colaborar em escala global?

Para que serviu o Telegram bloqueado?

O que nos leva ao terceiro ponto: será que o judiciário não deveria pensar duas vezes antes de bloquear serviços usados pela população? É claro que combater o nazismo é uma causa super prioritária e devemos empregar todos os esforços que pudermos nela. Mas o que estamos vendo aqui é uma trapalhada de comunicação entre o judiciário e o Telegram que, como consequência, prejudicou a vida dos 42 milhões de usuários ativos do app no Brasil. Muitos deles que usam o aplicativo para trabalhar e sustentar suas famílias. Se os dados que a justiça quer não existem, manter o Telegram bloqueado não está ajudando ninguém.

O Telegram entregou à Justiça os dados que eles tinham, o número de telefone e IP do administrador do grupo:

Captura de tela do ofício que deixou o Telegram bloqueado, mostrando os dados do administrador do grupo neonazista:
Usuário: #6129271951
Telefone: +51969506146
IP: 190.236.6.11, 11 Apr 2023, 4:16:36, UTC+0

Tanto o número de telefone quanto o endereço de IP são de Lima, no Peru:

Geolocalização do IP do administrador do grupo neonazista:
IP ADDRESS: 190.236.6.11
COUNTRY: Peru 
REGION: Lima
CITY: Lima
ISP: Telefonica del Peru S.A.A.
ORGANIZATION: Not available
LATITUDE: -12.0433
LONGITUDE: -77.0283

Faz sentido deixar o Telegram bloqueado para 42 milhões de pessoas por isso? Ainda mais por uma ordem impossível de ser cumprida?